quarta-feira, 15 de julho de 2009

“A política fiscal do governo Lula é a mais austera desde os últimos 30 anos”

Ciro Gomes: “A política fiscal do governo Lula é a mais austera desde os últimos 30 anos”

Em entrevista para o site Bahia Econômica, o deputado federal Ciro Gomes (PSB-CE) fala sobre o governo Lula, a política de juros do Banco Central, a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a atual política de desenvolvimento para o Nordeste. Para o socialista, a política fiscal do governo Lula é a mais austera desde os últimos 30 anos. Confira a entrevista concedida em Salvador (BA) para o jornalista Armando Avena.

Bahia Econômica – Como um estudioso, ex-governador e ex-ministro da Fazenda, que conhece a realidade brasileira, qual a sua avaliação sobre a política anticíclica do governo Lula?
Ciro Gomes - Ela melhora com o tempo. Mas na partida revelou uma certa perplexidade conceitual que eu conheço intimamente e sei que há. Não é só no governo. No Brasil vige essa perplexidade que agora os americanos estão nos ajudando a superar, na medida que fazem o que tem que ser feito, quando necessário. Essa é a grande política econômica: fazer o que tem que ser feito. E o Brasil tende a fazer com que o estigma e o preconceito, a encomenda “politicamente correta” vinda de fora para dentro, induzida nas duas últimas décadas pelo financismo que deu no que deu. Esse financismo também foi imposto na Argentina, que hoje é um país destruído. O Brasil, felizmente, tem uma elite, no melhor sentido da palavra, empresarial especialmente, que não deixou que esta loucura fosse às últimas conseqüências. Mas não é que não tenha sido tentado, não é? Então o mito neoliberal, que nos foi vendido como ciência ou ideologia, respeitada por certos argumentos, mas absolutamente doutrinária e religiosa por outros, estabelece para um país com as assimetrias competitivas que o Brasil tem na organização internacional do trabalho, um lugar que não paga nossas contas. Essa é a questão prática. O público consumidor brasileiro das cidades está informado sobre o último estágio de consumo no mundo, aspira como referência de ser feliz acessar isto, mesmo com a renda bastante apertada.

BE – Essas assimetrias seriam...

CG – Assimetrias, do tipo tecnológica, de escala, que precisam ser resolvidas. E isso será agravado dramaticamente num futuro próximo com a presença da China, naquelas áreas onde é importante o adensamento de mão-de-obra, como nas indústrias. Ai, o Brasil está perdendo milhares de empregos por ano por conta desta assimetria de escala. Há também as de financiamento e tecnológicas. Um exemplo: O Brasil assina e respeita todos os tratados, inclusive aqueles que têm a ver com propriedade intelectual. A China não assina e não respeita. O governo chinês pirateia domínios tecnológicos do tipo iconográficos, como iPhone. Recentemente o governo chinês copiou à venda o iPhone, com adereços e tudo o mais, mas custando um décimo do preço. Você imagine então um país como o nosso exposto a esse tipo de assimetrias competitivas e, por causa disso também, a nossa tradição é de déficits monstruosos nas relações correntes com os países estrangeiros. Só nos oito anos do governo Fernando Henrique foram US$ 160 bilhões e o Brasil quase quebra. A cada ciclo de contração da liquidez internacional há um incremento em relação a risco, o país não tem como financiar sua dívida externa deficitária e quebra. Não sem antes de hiperdesvalorizar sua moeda, fazer uma transcrição instantânea para um processo inflacionário. E o Banco Central brasileiro, mantém essa tradição hiperconservadora de descoordenação. A vida real não é descoordenada. Neste momento, por exemplo, o Brasil está com o câmbio errado porque o Banco Central, vendo nas tendências do Copom que precisa reduzir acelerada e pesadamente a taxa de juros, ele ainda atrasa nisso. Então o Copom estabelece uma política monetária que inunda o mercado de câmbios do Brasil de forma artificial e aí a nossa moeda se valoriza, nós perdemos competitividade internacional ainda mais agora que o comércio deu uma retraída dramática. É um negócio de maluco.

BE – Você considera que a política de juros do Banco Central equivocada?
CG – O Banco Central brasileiro, inacreditavelmente, subiu três vezes a taxa de juros, mesmo com as notícias da crise econômica. Isso quando os juros na zona do euro, na zona da África e no oriente estavam negativos. É um negócio inacreditável.

BE – E a política de redução dos impostos dos produtos, como a de automóveis, muitos afirmam que é uma boa política...

CG – Não, eu discordo. Não é uma boa política.

BE – Por quê?

CG – Porque é cobrir um santo e descobrir o outro. Pena que o santo que é descoberto é maior que o santo que é coberto. E é sempre uma expressão do Brasil organizado ganhando privilégios que são pagos pelo Brasil desorganizado. Vamos ter clareza: o IPI dos automóveis tem posição central no financiamento dos estados e municípios mais pobres do Brasil, via transmissão do Fundo de Participação. E na medida em que você, para proteger – com boa intenção – empregos na zona do ABC de São Paulo você desonera e faz uma promoção de vendas, é um ato unilateral de boa ação do governo, mas causa diretamente prejuízos ao financiamento de estados e municípios. A Bahia está pagando um preço grave. O municcipio de Fortaleza, que tem o maior fundo de participação do Brasil, é um dos que mais perde, deixou d ter receita substantiva. O Estado do Ceará, não. O governador é relativamente bem assessorado, havia ali algumas pessoas que estavam trabalhando com ele que estavam dizendo mais ou menos o que é que ia acontecer, e o Ceará está passando bem.


BE: E a carga tributária, não é alta?
CG – Veja, isso não quer dizer que o país não tenha que fazer, como uma das ferramentas para modelagem orgânica de desenvolvimento, um trabalho de reorientação de carga tributária. Aí é uma defesa que eu faço desde sempre. Muito mais que desonerar o importante é deslocar a carga. A desoneração não deve ser feita no consumo. O caminho correto é no investimento. O Brasil ainda pesa muito gravemente tributos sobre o investimento e desonera aquilo que é consumo e está errado, porque acaba sendo regressivo. Você financia o mais rico e desfinancia o mais pobre. Você vai ver o que vai acontecer se não renovar, no segundo semestre, a desoneração de impostos na indústria automobilística brasileira. Vai cair em 20 pontos o nível de vendas.

BE – Há uma crítica nessa política de redução de IPI para os automóveis relacionada com o aumento do número de automóveis nas cidades. Isso causaria uma desestrutura urbana. Como lidar com isto?

CG – Eu lhe dou os números. De janeiro a julho, o Brasil vendeu 1,5 milhão de automóveis. Como a calha das ruas está estagnada por um misto de impossibilidade – como é o caso do Pelourinho – e falta de investimentos, você está criando um colapso na vida das pessoas. O trabalhador das grandes cidades tem de trabalhar um terceiro turno pelo qual ninguém lhe paga nada, que são as quatro horas, mais ou menos isso, indo e voltando para casa.

BE – Outra crítica recorrente diz que os gastos correntes do governo têm aumentado muito. De janeiro a maio, a arrecadação caiu 7%, mas os gastos correntes aumentaram quase 20%. O gasto com investimento, que é fundamental, ampliou-se em apenas em R$ 10 bilhões, que foi mais ou menos o valor do acréscimo de folha de pessoal no período. Qual então a sua avaliação da política fiscal?

CG – A política fiscal do governo Lula é a mais austera desde os últimos 30 anos em que eu participo da vida pública brasileira. Eu fui ministro da Fazenda no governo de Itamar (Franco). Naquela data, quando eu passei o Ministério para o Pedro Malan, o país tinha uma dívida pública de 38% do PIB. Após os oito anos de Fernando Henrique, entregaram para o Lula, em janeiro de 2003, uma dívida pública de 78% do PIB. Então a questão fiscal, para o leigo, é assim: você em casa gasta mais do que ganha e isso vira dívida. É a mesma coisa. O Brasil pegou a política fiscal mais irresponsável de toda a nossa história na constância dos atuais críticos conservadores que estão em volta da turma de Fernando Henrique, de José Serra e etc, trazendo ao debate esta questão do gasto corrente. Eles, incluindo José Serra, então ministro do Planejamento, portanto figura central do plano econômico, pegaram a dívida de 38% e entregaram com 78%, mas não é só isso. Como esse galope aconteceu, a carga tributária, que era de 27 pontos percentuais do PIB, quando do último dia do meu ministério, eles entregaram pro Lula com 35%. Ou seja, eles aumentaram a receita de forma dramática, expandiram a dívida de maneira absolutamente única e desimobilizaram US$ 100 bilhões nas privatizações. Venderam o patrimônio. Não há farra fiscal mais grave na história brasileira em tempo algum. E olha que eu fui contemporâneo de Collor quando presidente, naquela época eu era governador do Ceará e já tinha sido prefeito da quinta cidade brasileira. Eu estou falando com números. O Collor, por exemplo, nesses números, é muito melhor que o Fernando Henrique, veja que absurdo, apesar de Fernando Henrique ser muito melhor que Collor no conjunto da obra. Com Lula, a carga tributária segue aumentando, mas não mais nesse galope, está em 37% do PIB, e a dívida desceu de 78 para 34% do PIB. Nós tivemos sequencialmente superávits primários em todos os meses e anos do governo Lula. Então o governo Lula é, fiscalmente, um governo muito responsável. O sinal é a carga tributária mais ou menos estabilizada, mesmo nos níveis absurdos, e a dívida que despencou.

BE: Indo mais direto ao ponto...
CG – Dito isto, vamos especializar. É fato que o governo do Lula descomprime determinados gastos correntes que levaram o Brasil a determinadas ações impossíveis. Porque às vezes a gente usa essas expressões contábeis que tiram o povo da jogada, porque ele não pode entender. Então o Fernando Henrique tinha proibido expandir o ensino superior público brasileiro. Podemos concordar com ele. Eu discordo veementemente, porque o hiato tecnológico do Brasil não será superado sem uma grave inversão em educação. E no caso brasileiro, em outubro do ano passado, estava faltando engenheiros no Brasil. Este país, que está por se construir, não tem engenheiros. Hoje no Brasil há um déficit de 400 mil professores de matemática. O jovem brasileiro filho da classe média, da classe trabalhadora, está se preparando de forma inepta para as linguagens que a nova economia pede, que é um profissional multi-habilidoso, preparados para as novas formas de inovação, qualificado para o trabalho em equipe, aquele que sabe lidar com as áreas de engenharia, que precedem as de tecnologia. Nem que seja para fazer a engenharia inversa, copiar, como os chineses estão fazendo, você precisa saber a linguagem. O Brasil está com uma geração de população analfabeta funcional com alto custo de qualificação formal. Está cheio de doutor dirigindo táxi porque a sociedade não aceita esse doutor da forma como ele recebeu o anel. O Lula faz isso. Expande escola, universidades e tal. Ele faz um punhado de acordos com o setor público. Alguns são do fundo da tradição petista. Mas o gasto corrente que explodiu, e que esse linguajar brasileiro exclui da lógica, é o gasto com juro. Porque qualquer centavo que você gaste com juro e não abata do principal, chama-se no almanaque básico de economia de gasto corrente. E o número é simples. O Lula tomou posse e a dívida pública era da ordem de R$ 680 bilhões, pagou R$ 1,2 trilhão de juros e nós estamos devendo R$ 1,4 trilhão.

BE – Sua atuação como gestor e tocador de obras é reconhecida. Com base nessa experiência, qual a sua avaliação da administração do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)?

CG – Eu gosto de ser sincero, mas muitas vezes eu sou mal-compreendido. A Dilma (Rousseff), piloto do PAC, é uma das pessoas da inteligência brasileira que está entre as mais extraordinárias. Porém, eu que ajudei a desenhar o PAC, disse ao presidente Lula e a própria Dilma: “o serviço público brasileiro não tem capacidade de gestão para operar esse nível de financiamento”. Não tem, esse é um problema. A administração pública brasileira, por causa dos gastos correntes, foi dilacerada. Como ex-ministro da Integração Nacional, eu te dou um número e você vai achar que é mentira, com toda razão. Eu tomei posse num ministério, que era um balcão, uma esculhambação. Fechei o ministério por três meses, fiz uma apurada no negócio e essa pasta, responsável por política nacional de irrigação, de infra-estrutura hídrica, defesa civil, desenvolvimento regional, tinha só sete funcionários de carreira. O resto desta estrutura era todo terceirizado, funcionário que entra hoje, sai amanhã e não tem memória, não tem qualificação, não tem mérito, compromisso, nada. Isso é um desastre completo. Se o Brasil, nesse novo reequilíbrio fiscal, reduz a taxa de juros, reduz a dívida pública, o Brasil dobra sua capacidade de investimento federal que passou, aliás, de ridículos 0,70%, 0,75% do PIB quando Lula tomou posse, para nada mais que 1,5%. Não é nada demais, não, ainda estão investindo nada. Um e meio por cento do PIB não é nada. Nós não temos capacidade de aplicar esse dinheiro com eficiência. Este foi um colapso da gestão principal do setor público.

BE: Alguns afirmam que a legislação rígida e a ação de organismos como o Ministério Público, órgão ambientais e outros estariam emperrando as ações?
CG – Aí, há um erro estratégico fruto do legado católico moral lusitano... não estou falando de religião, não, estou falando de moral lusitana, católica e tal, que é a da safadeza. A presunção é de desonestidade. E você tenta curar essa presunção, que já é em si errada, com o mito da legislação quando são muito mais de questão social, de transparência, do que de suprir a contradição humana com legislação. E aí você tem um conjunto de legislações ambiental, a ordem de atribuições do Ministério Público, que é uma grande coisa, mas com um caráter sem referências disciplinares, mais a legislação dos tribunais de contas do Brasil e outras. A legislação estúpida de licitação, na forma como está feita, diz assim: “está proibido fazer coisa certa no Brasil com a breve velocidade em que o povo pede”. É proibido, só consegue fazer isso quem consegue brigar com o bispo, senão não faz.

BE – O que acha da atual política de desenvolvimentos do Nordeste? Ela está certa ou haveria mais o que se fazer?

CG – Padece do mesmo problema do Brasil, que, aliás, não tem política para o Nordeste fora de uma lógica que esteja hegemônica no país. O Brasil precisa ter compromisso com o desenvolvimento, com a característica da inclusão das maioria não por dó ou piedade, mas porque é uma oportunidade para rivalizar com a China, em todos aqueles atributos que eles tem como produtividade, custo de mão-de-obra, logística. Daqui, nós estamos na esquina do mundo, olhando para mercados emergentes da África, mercados estabilizados da Europa. O Nordeste está bem localizado, tem alternativas de bioenergia, tem a energia eólica, solar, um caminho de serviços protagonizado pelo turismo global. Tem a possibilidade, pela desocupação do seu semi-árido, de ocupá-lo por outros formatos, de organizar o conceito de propriedade. Tudo isso são oportunidades extraordinárias para alavancar o Brasil. Descomprimindo o grande ônus que viabiliza o centro dinâmico da economia brasileira que é dar a essa imensa legião de brasileiros como destino o pau-de-arara. Para servir como viabilização de São Paulo, para servir de exército de reserva do recrutamento da violência no Rio de Janeiro e tal. Está tudo na nossa mão fazer, mas hoje o Lula mudou em relação ao abandono de vinte anos atrás. A primeira grande providência foi o salário mínimo. No nordeste, 70% dos trabalhadores com carteira assinada ganha salário mínimo. Se você sai de US$ 70, o salário, para US$ 230 você anima o processo econômico. E, além disso, tem o Bolsa Família, uma rede de proteção ao trabalhador.

BE – Para finalizar: Se o senhor for presidente, será um presidente desenvolvimentista?

CG – Se eu for presidente meu lema será: “desenvolvimento ou morte”.

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