terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Temor e desejo no gueto de Gaza

Temor e desejo no gueto de Gaza

“A Palestina é uma das grandes causas morais do nosso tempo.” - Edward Said, Cultura e política

“Baixas civis não podem ser completamente evitadas nesse confronto, porque os combates ocorrem em áreas densamente populosas.” - Shlomo Bromo, general reformado israelense, ex-diretor de divisão das Forças de Defesa de Israel (IDF)

“O suplício faz correlacionar o tipo de sofrimento físico, a quantidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas.” - Michel Foucault, Vigiar e punir (grifo nosso)

Os bombardeios e incursões por terra perpetrados por Israel nas últimas semanas no território palestino de Gaza dão continuidade ao processo de ´limpeza étnica` iniciado há 60 anos e jamais interrompido efetivamente. Espanta – entre tantos aspectos espantosos dessa sucessão de catástrofes – o fato de a ação genocida ter-se iniciado poucos anos após o holocausto nazista. A má-consciência histórica, a manipulação incessante da informação e os compromissos político-econômicos expõem, nesse quadro, representantes do Capital e do Estado a posturas vexaminosas diante da carnificina. Aqui e alhures, a grande imprensa o mais das vezes desdobra-se em eufemismos como ´incursões das tropas de Israel contra o Hamas no território de Gaza`, para definir o que suas próprias imagens demonstram ser o massacre dos palestinos por Israel. Surpreendida entre compromissos inconciliáveis, a chamada comunidade internacional tarda em agir de modo efetivo para deter o genocídio. O Itamaraty, que hoje parece disposto a engordar sua conta telefônica com delicados apelos por um cessar-fogo, além de participar da indispensável ajuda humanitária, num primeiro momento publicou nota em que embarcava na consagrada fórmula do ´pedido de moderação aos dois lados` – pedido que adquire amargo sabor de humor negro quando um lado massacra e o outro é massacrado (a nota brasileira, tão elegante quanto inócua, soaria adequada se tivesse como objeto, digamos, a defesa da integridade de prédios públicos ou de sítios arqueológicos de interesse universal, mas deixava muito a desejar em se tratando, como é o caso, de um massacre de seres humanos). A República do Paraguai, exercendo a presidência do Mercosul, seguiu a benevolência de Brasília. Vale lembrar, o indefinível bloco regional vem costurando acordo comercial com o Estado de Israel, e talvez fosse o caso de os cidadãos da região opinarem a respeito da iniciativa , em face dos acontecimentos em curso (membro em processo de adesão, a Venezuela reagiu de modo inequívoco, defenestrando o embaixador israelense). Sentada à presidência da União Européia, a República Tcheca cometeu pronunciamento espúrio, caracterizando como defensivo o ataque israelense – para logo desmentir-se a si mesma – enquanto nos EEUU a moribunda administração Bush pronunciou-se como convém aos patrocinadores do expurgo. Por sua vez, o presidente eleito Barack Obama, aquele que veio para realizar todas as mudanças e renovar todos os sonhos, declarou-se “preocupado” com as mortes de civis, mas esquivou-se de envolvimento nas negociações pelo fim das agressões. Ou seja, preocupado, sim, mas não a ponto de esquecer compromissos de campanha, e menos ainda de ignorar a origem de muitos dos dólares que ajudaram a alçá-lo à Casa Branca. Terrorismo, como se sabe, é o ato de alvejar civis para a obtenção de fins políticos, de modo que, ainda que Israel possa ter razão ao classificar como terroristas as milícias árabes, é-lhe impossível escapar da mesma definição. Ações como o ataque ao Hezbollah no Sul do Líbano e a atual ofensiva em Gaza a pretexto de deter o Hamas nada mais são que terrorismo de Estado. A ilegitimidade da ação israelense, portanto, reside no fato de não haver crime que aquele Estado possa imputar a seus inimigos que não haja ele mesmo praticado (em proporções sempre catastroficamente maiores), além de não ser verdadeira a recíproca: no conflito com os palestinos, somente os israelenses podem ser acusados de, por exemplo, invadir e expropriar terras alheias, ou de perpetrar ações genocidas (como a atual, como a de Sabra e Shatila em 1982 etc). Símbolo desse aspecto marginal e desafiador de Israel perante a lei, de seu desprezo e escárnio pela comunidade internacional, são as dezenas de resoluções (181, 194, 242, 252, 446...) das Nações Unidas solenemente ignoradas por aquele Estado desde a sua fundação. Longe de restringir-se ao debate teórico, o esclarecimento acima adquire contornos bem concretos após eventos como o de ontem, 6 de janeiro, quando um tanque israelense abriu fogo contra uma escola para meninas refugiadas mantida pela ONU na cidade de Jabaliya, assassinando 30 pessoas e ferindo mais de 50. Diante do massacre injustificável sob qualquer ponto de vista, até mesmo o jornalismo brasileiro se viu obrigado a expressar perplexidade e subir um pouco o tom de sua cobertura, enquanto um assessor de Lula ousou dar à coisa o nome que a coisa tem, chamando de terrorismo o terrorismo. A pergunta que muitos se fazem, neste momento, é: por que uma violência tão desproporcional? Afinal, a desgastada cantilena israelense “estamos agindo em auto-defesa”, em suas diversas variações, assume, com o desenrolar do genocídio, o aspecto grotesco de um deboche macabro. Claro está, o Hamas – em que pese a retórica de seus líderes –, embora possa perturbar o dia-a-dia dos colonos invasores, não possui nem de longe capacidade de ameaçar a integridade do Estado de Israel. Do ponto de vista bélico, um dos seus maiores feitos teria se realizado também na data de ontem, quando um projétil lançado pelo grupo chegou a 30 km de Tel Aviv, atingindo a janela de uma casa (e assim ferindo uma criança). Ora, se a ameaça militar representada pelo Hamas é, quando muito, uma piada, por que Israel responde com fúria avassaladora? O que, afinal, ameaça Israel? E o que Israel de fato deseja? Em psicologia, considera-se uma reação desproporcional de um indivíduo a uma ação de outrem como um evento prenhe de significado, por revelar a existência de uma ´causa encoberta`, provavelmente de fundo traumático. Por outro lado, Michel Foucault, aqui citado em epígrafe, salienta o caráter exemplar dos suplícios infligidos pelo Poder sobre o corpo do condenado, lição que implica necessariamente o emprego de violência desproporcional. A investida israelense sobre Gaza, em suma, permite duas interpretações, não excludentes entre si. A primeira é que o combate ao Hamas seria apenas mais um pretexto para a continuidade do processo de ´limpeza étnica` iniciado há 60 anos, ou seja, para o extermínio dos palestinos ou sua expulsão da Palestina como suposta garantia de paz para Israel (desejo oculto ). A segunda é que a supressão do Hamas – o qual, como se vê, não representa ameaça militar considerável – responde à necessidade de suprimir aquilo que ele significa, as perguntas que o grupo suscita ou pode suscitar pelo simples fato de existir (temor oculto). Afinal, a existência de um grupo armado como o Hamas, com sua retórica ´extremista` – seja lá o que isso queira dizer no estado de coisas reinante –, a sua popularidade entre os palestinos, recentemente expressa por votação massiva, são reflexo direto da situação vivida cotidianamente por aquele povo desde 1948, marcada por expropriação de terras e casas, deslocamentos forçados, estupros, torturas, assassinatos, privações, humilhações de toda ordem e todo um rol de violações de seus direitos sob o jugo de Israel, a começar pelo direito de viver onde viveram seus pais e avós. Falar do Hamas, portanto, ou de qualquer guerrilha palestina, implica necessariamente abordar esse cotidiano de desespero vivido pelo povo da Palestina, bem como aspectos racistas da legislação de Israel, fortemente baseada na distinção entre judeus e não-judeus, e sua difícil definição como Estado democrático. Ignorando esses fatos, cegos a esse temor e a esse desejo, ficamos presos ao nonsense do discurso encobridor. Mas estaríamos dispostos a ver que Israel tornou-se isso o que se tornou, após milhares de judeus terem vivido o que viveram no século passado?

*Pedro Amaral é escritor e editor de Comunicação&política (www.cebela.org.br)

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